Os desfiles das escolas de samba no ano de 2018, especialmente no Rio de Janeiro demonstraram o alto grau de compreensão da realidade e a capacidade de crítica, análise e comunicação com o clamor das ruas em nosso Brasil.
Vamos fazer uma pequena retrospectiva dos desfiles mais impactantes de 2018 no grupo especial do carnaval do Rio de Janeiro.
Vamos utilizar como referência a ordem de classificação das escolas. Dessa forma, iniciamos com o enredo da Beija-Flor de Nilópolis, que levou para a avenida o enredo "Monstro é aquele que não sabe amar - Os filhos abandonados da Pátria que os pariu!". Demonstrando uma estética bem diferente do seu estilo, mostrando a modernização da escola, fechou o desfile do grupo especial com fortes críticas ao momento atual que vive o Brasil, mergulhado em denúncias de corrupção e aprofundando o descaso com os assuntos mais doloridos à população, como Educação, Saúde, Segurança, etc.
Vejamos inicialmente a Letra do Samba:
Oh pátria amada, por onde andarás?
Seus filhos já não aguentam mais!
Você que não soube cuidar
Você que negou o amor
Vem aprender na Beija-Flor
Sou eu, espelho da lendária criatura
Um monstro carente de amor e de ternura
O alvo na mira do desprezo e da segregação
Do pai que renegou a criação
Refém da intolerância dessa gente
Retalhos do meu próprio Criador
Julgado pela força da ambição
Sigo carregando a minha cruz
À procura de uma luz, a salvação!
Estenda a mão, meu senhor
Pois não entendo tua fé
Se ofereces com amor
Me alimento de axé
Me chamas tanto de irmão
E me abandonas ao léu
Troca um pedaço de pão
Por um pedaço de céu
Ganância veste terno e gravata
Onde a esperança sucumbiu
Vejo a liberdade aprisionada
Teu livro eu não sei ler, Brasil!
Mas o samba faz
Essa dor dentro do peito ir embora
Feito um arrastão de alegria e emoção, o pranto rola
Meu canto é resistência
No ecoar de um tambor
Vem ver brilhar
Mais um menino que você abandonou
Ao longo do desfile nosso país foi revelado em suas faces mais perversas:
Abre-alas representando os centros de poder do país como Senado, Câmara dos Deputados, Palácio do Planalto e Sede da Petrobrás. Na base, o rato simbolizando as relações sujas e subterrâneas que permeiam o poder no Brasil.
Em cada Cubo, cenas da realidade que sofrem o efeito dessa sujeira nacional.
Educação, Segurança, Impostos elevados, corruptos em todos os campos, inclusive nos gramados, onde a violência também campeia. Cenas do cotidiano brasileiro!
Porém, da mesma forma em que a realidade nos traz a desesperança, o samba faz o serviço inverso, como na própria letra do samba.
Na sequência o assunto mais comentado do carnaval 2018, a até então "pequena" Paraíso do Tuiuti, encantou e representou o sentimento nacional quando bradou o grito de liberdade na Sapucaí. Com o enredo "Meu Deus, Meu Deus, está extinta a escravidão?" e um samba antológico, rasgou a avenida alcançado o inédito segundo lugar no grupo especial, feito maior da escola em sua história. Para muitos, merecedora do título.
Através de um enredo de leitura plástica muito fácil, atraiu o público e com o samba forte e já conhecido antes mesmo do desfile pelo reconhecimento de seu significado na realidade, cutucou forte em temas sensíveis dos últimos anos como a reforma trabalhista, previdenciária, manifestações populares nas ruas contra os governos, etc. O samba enredo já consta nas listas de analistas como um dos grandes da história do carnaval carioca:
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação
Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor
Ê, Calunga
Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor
Amparo do Rosário ao negro Benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Para uma escola vista como "pequena" pela crítica, o resultado obtido foi além das expectativas. Porém, para quem já acompanha os desfiles há mais tempo e não somente do grupo especial, pode observar que a escola já vem tratando de temas relevantes com enredos muito bem elaborados há muitos anos.
A Comissão de frente foi uma das sensações da escola.
O presidente da república caracterizado como vampiro, sugando dinheiro e direitos.
As reformas trabalhista e previdenciária também foram alvo de críticas.
Uma das alas mais emblemáticas foi a dos "manifestoches", fazendo referência aos manifestantes que saíram à rua contra o governo vestindo camisetas da seleção e fazendo panelaços durante falas da então presidente Dilma Roussef. A ala mostrava os mesmos sendo controlados por uma mão não identificada dando a entender que haviam interesses por trás dessas manifestações.
Um desfile que ficará marcado na história como um dos mais significativos.
Ainda em 2018 tivemos momentos importantes nos desfiles como o exemplo da Estação Primeira de Mangueira, que com poucos recursos, investiu no samba no pé aliada à crítica forte à falta de apoio das autoridades municipais aos desfiles das escolas de samba, que geram muito retorno turístico e financeiro à cidade. Eis um trecho do desfile, que parece fazer referência ao prefeito da cidade do Rio de Janeiro, muito ligado à uma igreja:
"O morro desnudo e sem vaidade
Sambando na cara da sociedade
Levanta o tapete e sacode a poeira
Pois ninguém vai calar a Estação Primeira
Se faltar fantasia alegria há de sobrar
Bate na lata pro povo sambar
Eu sou Mangueira meu senhor, não me leve a mal
Pecado é não brincar o carnaval!"
No quesito "consciente da realidade", um destaque foi o desfile da Imperatriz Leopoldinense, que fez uma homenagem aos 200 anos do Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro. O desfile buscava além de comemorar a data especial, dar visibilidade às dificuldades financeiras pelas quais o museu vinha passando nos últimos anos, causando graves problemas ao acervo, o próprio prédio histórico e diversas pesquisas que eram conduzidas no complexo do local.
Porém, meses depois o que vimos foi que o apelo não surtiu o efeito esperado e necessário visto que um incêndio acabou por destruir quase totalmente o prédio e uma infinidade de peças e pesquisas únicas, acabando com boa parte de nossa história e se tornando símbolo do cuidado que o país "não tem" com sua história e cultura.
Estes foram apenas alguns enredos que chamaram a atenção para questões do nosso país muitas vezes deixadas de lado nos noticiários. Os desfiles das escolas de samba são palcos que trazem essas questões ano após ano. Está mais do que na hora de ouvirmos e valorizarmos mais esses espaços onde nós podemos nos encontrar e debater. Esse espetáculo é nosso, é nossa raíz.
Em 2019 diversos enredos críticos estão sendo elaborados, muitos já possuem sambas de enredo definidos e tocam mais uma vez em feridas da nossa sociedade.
Por hoje, relembramos alguns momentos de 2018.
Até a próxima!