Este espaço surgiu com o desejo de entrelaçar os conhecimentos históricos com a maior manifestação cultural do Brasil, original do nosso país, sem cópia enlatada. O maior espetáculo da terra é o ar que respiro há muito anos, cantarolando no carro, mentalmente, nas redes sociais, trechos de sambas que inexplicavelmente me fazem arrepiar, relembrar, sentir estar em outro lugar.
Este espaço hoje vem agradecer por uma tradução dessa relação sonhada, entre história e carnaval, levada à cabo pela Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira para o carnaval 2019. O enredo "História para ninar gente grande", de autoria do carnavalesco Leandro Vieira, é a perfeita tradução do que imaginei ao criar este espaço.
Crédito do logo: Igor Matos |
A sinopse do enredo, peça produzida para explicar o enredo e nortear os compositores do samba, é perfeita, por esse motivo publico ela integralmente:
Sinopse da Estação Primeira de Mangueira para 2019:
HISTÓRIA
PRA NINAR GENTE GRANDE é um olhar possível para a história do Brasil.
Uma narrativa baseada nas “páginas ausentes”. Se a história oficial é
uma sucessão de versões dos fatos, o enredo que proponho é uma “outra
versão”. Com um povo chegado a novelas, romances, mocinhos, bandidos,
reis, descobridores e princesas, a história do Brasil foi transformada
em uma espécie de partida de futebol na qual preferimos “torcer” para
quem “ganhou”. Esquecemos, porém, que na torcida pelo vitorioso, os
vencidos fomos nós.
Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não
dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na
realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar
heróis "dignos" de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o
mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da
concessão de uma “princesa” e não do resultado de muitas lutas, conta-se
uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para
que, quando gente grande, você continue em sono profundo.
De
forma geral, a predominância das versões históricas mais bem-sucedidas
está associada à consagração de versões elitizadas, no geral, escrita
pelos detentores do prestígio econômico, político, militar e educacional
- valendo lembrar que o domínio da escrita durante período considerável
foi quase que uma exclusividade das elites – e, por consequência
natural, é esta a versão que determina no imaginário nacional a memória
coletiva dos fatos.
Não à toa o termo “DESCOBRIMENTO” ainda é
recorrente quando, na verdade, a chegada de Cabral às terras brasileiras
representou o início de uma “CONQUISTA”. E, ao ser ensinado que foi
“descoberto” e não “conquistado”, o senso coletivo da “nação” jamais foi
capaz de se interessar ou dar o devido valor à cultura indígena,
associando-a “a programas de gosto duvidoso” ou comportamentos
inadequados vistos como “vergonhosos”.
Comemoramos 500 anos de
Brasil sem refazermos as contas que apontam para os mais de 11.000 anos
de ocupação amazônica, para os mais de 8.000 anos da cerâmica mais
antiga do continente, ou ainda, sem olhar para a civilização marajoara
datada do início da era Cristã. Somos brasileiros há cerca de 12.000
anos, mas insistimos em ter pouco mais de 500, crendo que o índio,
derrotado em suas guerras, é o sinônimo de um país atrasado, refletindo o
descaso com que é tratada a história e as questões indígenas do Brasil.
Não fizeram de CUNHAMBEMBE – a liderança tupinambá responsável pela
organização da resistência dos Tamoios – um monumento de bronze. Os
índios CARIRIS que se organizaram em uma CONFEDERAÇÃO foram chamados de
BÁRBAROS. Os nomes dos CABOCLOS que lutaram no DOIS DE JULHO foram
esquecidos. Os Índios, no Brasil da narrativa histórica que é
transmitida ainda hoje, deixaram como “legado” cinco ou seis lendas, a
mandioca, o balanço da rede, o tal do “caju”, do “tatu” e a “peteca”.
Levando
em conta apenas pouco mais de 500 anos, a narrativa tradicional
escolheu seus heróis, selecionou os feitos bravios, ergueu monumentos,
batizou ruas e avenidas, e assim, entre o “quem ganhou e quem perdeu”,
ficamos com quem “ganhou.” Índios, negros, mulatos e pobres não viraram
estátua. Seus nomes não estão nas provas escolares. Não são opções para
marcar “x” nas questões de múltiplas escolhas.
Deram vez a
outros. Outros que, por certo, já caíram nas suas “provas”. Você
aprendeu que os “BANDEIRANTES” – assassinos e saqueadores – eram os
“bravos desbravadores que expandiram as fronteiras do território
nacional”. DOM PEDRO, o primeiro, você “decorou” que era o “herói” da
Independência, sem que as páginas dos livros contassem a “camaradagem”
de um “negócio de família” tão bem traduzido pela frase do PAI do
Imperador, que a ele orientou: “ponha a coroa na tua cabeça, antes que
algum aventureiro o faça”. Convém esclarecer aqui que os “aventureiros”
citados por DOM JOÃO éramos nós, brasileiros, e que a “independência”
proclamada – ou programada - foi para evitar que tivéssemos aqui
“aventureiros” como Bolivar ou San Martin, patriarcas bem-sucedidos das
“independências” que não queriam por aqui.
Como “CABRAL”, o
“ladrão”, que roubou o Brasil lá pelas bandas de mil e quinhentos, ou
PEDRO I, que através de um acordo “mudou duas ou três coisas para que
tudo ficasse da mesma forma”, tem também o Marechal, o DEODORO DA
FONSECA, homem de convicções monarquistas – amigo pessoal do Imperador
PEDRO II – autor da proclamação de uma República continuísta - sem
participação popular - traduzida em golpe e que, na ausência de líderes,
mandou “pintar” um retrato do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o
TIRADENTES, na tentativa de produzir “um personagem pra chamar de seu”.
Se
a República foi “golpe”, conclui-se que “golpe” no Brasil não é
novidade. Nem é novidade que a natureza dos “golpes” ainda estejam mal
contadas. A rodovia CASTELO BRANCO “corta” São Paulo com “nome de
batismo” em homenagem ao primeiro general “do GOLPE DE 1964”. Para
cruzar a Baía da Guanabara em direção a Niterói, lá está a ponte
PRESIDENTE COSTA E SILVA, o mesmo que fechou o Congresso Nacional e
aditou o AI-5 suspendendo todas as liberdades democráticas e direitos
constitucionais. Em Sergipe, em dias de jogos, a bola rola no estádio
PRESIDENTE MÉDICI, o general dos “ANOS DE CHUMBO”, do uso sistemático da
tortura e dos violentos assassinatos. Nas ruas - por terem lido um
livro que “ninou” e não “ensinou” falando da suspensão dos direitos
humanos, da corrupção e dos assassinatos cometidos no período –
aparecem faixas para pedir “intervenção militar”, décadas depois da
redemocratização.
Sem saber quem somos, vamos a “toque de gado”
esperando “alguém pra fazer a história no nosso lugar”, quiçá uma
“princesa”, como a ISABEL, a redentora, que levou a “glória” de colocar
fim ao mais tardio término de escravidão das Américas. Nunca esperaremos
ser salvos pelos tipos populares que não foram para os livros. Se
“heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações,
pontos de referências, fulcros de identificação” a construção de uma
narrativa histórica elitista e eurocêntrica jamais concederia a líderes
populares negros uma participação definitiva na abolição oficial. Bem
mais “exemplar” a princesa conceder a liberdade do que incluir nos
livros escolares o nome de uma “realeza” na qual ZUMBI, DANDARA, LUIZA
MAHIN, MARIA FELIPA assumissem seu real papel na história da liberdade
no Brasil.
O fato é que a atuação de “gente comum”, ou mesmo a
incansável luta negra organizada em quilombos, em fugas, no esforço
pessoal ou coletivo na compra de alforrias e em revoltas ou
conspirações, já enfraqueciam o sistema escravocrata àquela altura.
Entretanto, ensinar na escola o nome de “CHICO DA MATILDE”, jangadeiro,
mulato pobre do Ceará (líder da greve que colocou fim ao embarque de
escravos no estado nordestino, levando-o à abolição da escravatura
quatro anos antes da princesa ganhar sua “fama” abolicionista) não
serviria à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam
de concessões vindas "do alto" e não das lutas. A história de CHICO DA
MATILDE era inspiradora demais para o povo. Não à toa, seu nome não está
nos livros.
Esses nomes não serviram para eles. Para nós, eles
servem. Para nós, sentinelas dos “ais” do Brasil, heróis de lutas sem
glórias ainda deixados “de tanga” ou preso aos “grilhões”, eles são as
ideias que usaremos para “gestar” o que virá. “Engravidados” de novas
ideias, jorrará leite novo para “amamentar” os guris que virão. Sabendo
outra versão de quem é o Brasil, - não a que nos “ninou” para quando
fôssemos adultos – sabendo que CABRAL “invadiu” e que, ao invés de
quinhentos e dezenove anos, somos brasileiros há quase doze mil anos.
Conhecendo CUNHAMBEBE, a CONFEDERAÇÃO DOS CARIRIS, cientes da
participação dos CABOCLOS na luta do 02 DE JULHO NA BAHIA, e sabendo que
os índios lutaram e resistiram por mais de meio século de dominação,
talvez se orgulhem da porção de sangue que faz de TODOS NÓS, sem
exceção, índios. Sabendo que a “bondosa” princesa Isabel deu vez a
“Chico da Matilde”, “Luiza Mahin” e “Maria Felipa”, é possível que
reconheçam em si a bravura que vive à espreita da hora de despertar e
aí, talvez, o “gigante desperte sem ser para se distrair com a TV”.
Cientes
de que nossa história é de luta, teremos orgulho do Brasil. Alimentados
de leite novo e bom, varreremos de nossos “porões” o complexo de
“vira-latas” que fomenta nossa crença de inferioridade. Veremos tanta
beleza na escultura de ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA quanto no quadro que
eterniza o sorriso da Monalisa. Nos orgulharemos do “tupi” que falamos –
mesmo sem saber. Daremos mais cartaz ao saci do que à “bruxa”.
Brincaremos mais de BUMBA MEU BOI, CIRANDA E REISADO. Nossas crianças
enxergarão tanta coragem no CANGACEIRO quanto no “cowboy”. Vibraremos
quando SUASSUNA estrear em “ROLIÚDE” sem tradução para o SOTAQUE de João
Grilo e Chicó. Não estranharemos caso o Mickey suba a ESTAÇÃO
PRIMEIRA, troque "my love" por "minha nêga" e mande pintar o "parquinho"
da Disney com o VERDE E O ROSA DA MANGUEIRA.
POR LEANDRO VIEIRA
Sem mais palavras, apenas OBRIGADO ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA!!!!!
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