Nos últimos anos, especialmente em 2019, através do enredo "História para ninar gente grande", da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, do grupo especial do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, temos visto um movimento de resgate de partes da história do Brasil e de personagens até então desconhecidos da maior parte da população.
Naquele enredo, a escola trouxe à luz personagens esquecidos da história nacional como Tereza de Benguela, Aqualtune, Dandara, Cunhambebe, Luísa Mahin, José Piolho, Esperança Garcia, Acotirene e tantos outros que escreveram páginas muito destacadas de nossa (sim, nossa, brasileira) história, e que oportunamente merecerão uma postagem exclusiva neste blog visto que o desfile citado engloba boa parte dos princípios que inspiraram a criação deste blog.
Pois bem, muitos destes personagens permanecem apenas nas memórias dos ancestrais e na história oral de recantos do nosso país. Faz muito bem à cultura de qualquer país que deseja desenvolvimento, profundo conhecimento sobre sua própria história e, sobretudo, valorização dos personagens que fizeram parte desta. Para além deste enredo, que por se tratar de uma das maiores escolas de samba, gerou muita repercussão, inclusive o título do carnaval, diversas outras escolas em variadas ocasiões lançaram olhar sobre fatos de nossa história de formas diferentes do usual.
Hoje, buscamos o desfile de 2003 da escola de samba Caprichosos de Pilares. Atualmente, após 2 anos de inatividade, a Caprichosos desfilou em 2020 pelo grupo de acesso da Intendente Magalhães, uma espécie de 4ª divisão do carnaval carioca. Porém, em 2003 desfilava no grupo de elite das escolas de samba e alcançou o 10º lugar naquele ano.
Uma escola muito tradicional, fundada em 1949 e que fez desfiles marcantes como o enredo "Saudade" de 1985. Voltando ao tema principal da postagem, em 2003 a escola trouxe o enredo "Zumbi, rei de Palmares e Herói do Brasil. A história que não foi contada", onde contextualiza o momento europeu que levou ao período chamado de grandes navegações até o florescimento do Quilombo de Palmares e a liderança de Zumbi.
Como o nome do enredo diz, essa história, por completo, não é costumeiramente contada se levarmos em conta a historiografia tradicional ensinada nas escolas, em que a citação a Zumbi em muitas ocasiões nem mesmo aparece e quando muito, oferece apenas a designação de líder do quilombo.
Inicialmente vamos à letra do Samba de Enredo, composto por Carlos Ortiz, Cláudia Nel, Alberto Capital e Mestre Augusto e o saudoso intérprete Jackson Martins:
ÁFRICA
DOS GUERREIROS DE ANGOLA, GEGE E YORUBÁ
NA ESCRAVIDÃO, QUE AGONIA
AI, COMO O NEGRO SOFRIA
NO DESTINO DE ALÉM-MAR
DOS GUERREIROS DE ANGOLA, GEGE E YORUBÁ
NA ESCRAVIDÃO, QUE AGONIA
AI, COMO O NEGRO SOFRIA
NO DESTINO DE ALÉM-MAR
O EUROPEU NO TROCA-TROCA CONSEGUIU
LEVAR AS "PEÇAS DA GUINÉ" PARA O BRASIL
NESSE COMÉRCIO, A PIRATARIA SURGIU
ILU-AYÊ, ILU-AYÊ, UM CANTO TRISTE ECOOU Ô Ô
ILU-AYÊ Ô, NA SENZALA, SOFRIMENTO E DOR
LEVAR AS "PEÇAS DA GUINÉ" PARA O BRASIL
NESSE COMÉRCIO, A PIRATARIA SURGIU
ILU-AYÊ, ILU-AYÊ, UM CANTO TRISTE ECOOU Ô Ô
ILU-AYÊ Ô, NA SENZALA, SOFRIMENTO E DOR
VEJA, IFÁ FALOU
QUE OS ORIXÁS VÃO ENVIAR UM LIBERTADOR
CANTA PILARES
ZUMBI FOI REI LÁ NO QUILOMBO DOS PALMARES
NA CULTURA O NEGRO SE AGIGANTA
A FÉ DA "TERRA MÃE" É SEU ALENTO
EXISTE UM GRITO PRESO NA GARGANTA
SÓ OXALÁ SEGURA O FIO DA ESPERANÇA
A FÉ DA "TERRA MÃE" É SEU ALENTO
EXISTE UM GRITO PRESO NA GARGANTA
SÓ OXALÁ SEGURA O FIO DA ESPERANÇA
QUERO SER LIVRE
ESSE LAMENTO RESSOOU NA SOCIEDADE
QUE TEM AS CHAVES
MAS PRENDE SEUS HERÓIS NA MARGINALIDADE
ESSE LAMENTO RESSOOU NA SOCIEDADE
QUE TEM AS CHAVES
MAS PRENDE SEUS HERÓIS NA MARGINALIDADE
VI NOS OLHOS VERDES DO HOLANDÊS OUTRO PAÍS
CAIU PALMARES, LIBERDADE NÃO SE MATA NA RAIZ
CAIU PALMARES, LIBERDADE NÃO SE MATA NA RAIZ
NO BATUQUE BATERIA, SOU ZUMBI
ONDE HÁ PAZ E ALEGRIA, EU TÔ AI
QUERO AMOR E MUITO MAIS DIGNIDADE
A CAPRICHOSOS LUTA PELA IGUALDADE
ONDE HÁ PAZ E ALEGRIA, EU TÔ AI
QUERO AMOR E MUITO MAIS DIGNIDADE
A CAPRICHOSOS LUTA PELA IGUALDADE
Vamos ao dicionário do samba, esclarecer algumas expressões ou nomes citados:
Gege e Yorubá são tribos africanas
Peças da Guiné é a forma como eram chamados os escravizados
Ilu-Ayê é uma saudação á terra mãe, terra da vida, saudade da África
Ifá seria uma espécie de oráculo que orienta aqueles que tem dúvidas
Oxalá seria uma divindade responsável pela criação universal
Destacamos aqui um trecho do samba que reforça a ideia de resgate de personagens esquecidos da nossa história, qual seja:
"QUERO SER LIVRE
ESSE LAMENTO RESSOOU NA SOCIEDADE
QUE TEM AS CHAVES
MAS PRENDE SEUS HERÓIS NA MARGINALIDADE"
O carnavalesco Jaime Cezário, autor do enredo, baseado no livro de Eduardo Fonseca Júnior, organizou a sinopse como segue abaixo:
SINOPSE DO ENREDO
Abertura:
No final do século XVI, na África ocidental, Impérios Tribais floresciam e impunham respeito pela força dos seus exércitos de guerreiros, o Rei (Oba) era cercado por uma guarda especial, cuja função era defender a sobrevivência do clã representado pelo monarca e garantir a sucessão ao trono. Esta sociedade era composta por generais e oficiais e exerciam o controle direto sobre o povo
1ºSetor: A África Imperial e a falência das Monarquias Européias.
No final século XV a Europa atravessa uma grave crise econômica acelerada pelo fechamento por terra do acesso às especiarias do oriente. Numa falência iminente, os reinos de Portugal e Espanha iniciam o período das Grandes Navegações, numa tentativa de descobrir pelo mar o caminho marítimo para as Índias. Era a política do “navegar é preciso”. Nessa aventura náutica encontram novas terras que vieram a ser chamadas de Novo Mundo e nele o Brasil.
Na costa da África ocidental se deparam com Impérios Tribais organizados e tremendamente belicosos. Eram os Impérios Tribais Yoruba, Gêge e Angola ou Congo que ao longo do litoral africano se subdividiam em inúmeras sociedades estabelecidas em cidades fortificadas, extremamente bem protegidas. Portugal e Espanha após um longo namoro diplomático conseguem estabelecer entrepostos comercias para obter produtos como ouro e marfim em troca de rum, folhas de fumo, tecido e, barras de ferro europeu.
Portugal com a colonização do Brasil, necessitava de mão de obra farta e barata para trabalhar na lavoura da cana de açúcar. Então, resolve adotar uma prática já muito conhecida dos europeus: a escravidão. Na sociedade africana a escravidão também era praticada com os derrotados em guerras tribais, mas o escravo na África tinha alguns direitos e podia se tornar até um membro da família à qual pertencia. Para o europeu os escravos eram considerados objetos e receberam inicialmente o nome de “peças da Guiné” . Os primeiros escravos a serem enviados para o Brasil foram solicitados para trabalhar no Colégio Jesuíta da Bahia.
2º Setor: O Degredo e a Diplomacia.
O sucesso do sistema Mercantilista utilizado por Portugal e Espanha origina um novo enriquecimento dessas monarquias, conseqüência do açúcar produzido em suas colônias no Novo Mundo e pela mão de obra escrava. Com isso intensifica-se cada vez mais o tráfico. Para o Brasil viram mais de 10 milhões de negros africanos sendo transportados pelos famosos navios negreiros. Este sucesso chama a atenção de outras monarquias como Inglaterra e França, que entram nesse comércio através do uso da pirataria, negociando diretamente com reis africanos que eram vinculados ao sistema de cooperação luso-espanhol. Eles utilizam o sistema dos “Piratas Proscritos” que apesar de pertencerem a estas duas monarquias utilizavam a bandeira pirata para fazer o comercio entre África e as colônias do Novo Mundo. O namoro diplomático entre as monarquias européias e os reis africanos era devido à intimidação imposta através dos grandes exércitos de guerreiros que cada império tribal possuía para proteção de suas cidades e seu povo.
3º Setor: Dor e Liberdade!
A liberdade se transforma em dor e sofrimento nos canaviais e senzalas. Tribos que eram inimigas na África se unem pela dor no Brasil.Os escravos eram oriundos de guerras intertribais e os perdedores eram escravizados e vendidos aos europeus para trabalharem na cultura da cana de açúcar. O sofrimento se transforma num triste canto, onde os negros imploram aos seus deuses e orixás que enviem um Herói libertador!
Do louvor à realidade, surge em Alagoas, na região conhecida como Serra da Barriga, o reduto sonhado: Palmares!
Palmares era a realização do sonho do negro escravizado! Palmares era a terra da Liberdade!
No comando estava Zumbi, que planta no coração da Colônia Portuguesa um reduto de homens livres! Palmares abrigava além do negro, brancos perseguidos e índios massacrados. A liberdade se transformou em Zumbi, e ele faz novamente o negro sonhar!
4º Setor: A Religião da Mãe África é preservada.
A predestinação deste lugar e seu líder fazem preservar a cultura e a religião dos seus ancestrais. Através de seu Sumo Sacerdote Bambushê Adinomodo, preparam-se homens e mulheres e perpetuam nesta terra, as religiões da Mãe África. Os ritos Yorubá-nagô, Gêge e Angola/Congo são ensinados e fizeram de Palmares um marco na preservação da cultura religiosa africana.
5º Setor: Heróis do Povo e Marginais para a História Oficial.
Muitos nesta terra eram a favor da causa de Zumbi e o sonho de Palmares. Assim foi Isaac Abuab da Fonseca, o primeiro Rabino do Brasil, que fez de sua sinagoga em Recife, uma verdadeira embaixada de Palmares. Sensível à causa dos negros escravizados, torna-se uma espécie de conselheiro nas questões referentes ao português colonizador.
Outro forte pilar da causa de Zumbi era o pirata pluvial conhecido como “Cabeleira” ou “O Boto” . Ele aterrorizava os entrepostos comerciais portugueses. Saqueava-os e distribuía o fruto desses saques às comunidades pobres, aldeias indígenas e quilombos. Este bravo homem lutou junto a Zumbi em inúmeros momentos contra os portugueses.
6º Setor: O Holandês dos Olhos Verdes.
A Invasão e o domínio holandês no nordeste brasileiro (1630 a 1654), faz do fidalgo holandês Maurício de Nassau um capítulo à parte em relação a Palmares. Homem de rara inteligência e visão apaixonou-se pelo Brasil e o fruto disto, foi um momento de rara prosperidade da colônia holandesa comandada por ele. Nassau sonha em transformar o nordeste brasileiro no Império Maurício e fazer de Recife sua capital. Estabeleceu um contato diplomático com o Quilombo que ficou conhecido como Período Holandês de Palmares. Negociava abertamente com os habitantes que vendiam suas produções agrícolas para a Colônia Holandesa, e tinham livre acesso às cidades por eles dominadas. Problemas políticos com a Holanda fizeram o fidalgo holandês pedir demissão do cargo. Sua saída acelera a venda em surdina da colônia holandesa para Portugal, por oito toneladas de ouro brasileiro.
7º Setor: Zumbi esta vivo!
Com a retomada do controle da Capitania de Pernambuco, os portugueses começam a preparação dos planos para a destruição total de Palmares, apesar de nesse período ter-se proposto um tratado de paz entre Palmares e portugueses, que ficou conhecido como “Paz dos Brancos” . Na realidade, era uma tentativa de enganar Zumbi e seus homens.
Os portugueses dão sua cartada final sob o comando do bandeirante Domingos Jorge Velho. Com um exército de mais de cinco mil homens fortemente armados, conseguem, após cinco anos de sítio, vencer os bravos guerreiros e destruir o último quilombo.
Seria o final do sonho de Zumbi e seu povo?
Com certeza não, pois o que Zumbi nos deixou como legado é muito maior do que os portugueses poderiam supor naquele momento. Zumbi nos faz entender que liberdade não é um favor e dignidade é uma condição necessária para qualquer pessoa ser chamada de Povo e um território de Nação!
Palmares viveu na colônia portuguesa por 85 anos, um marco mundial de luta pela dignidade humana!
Zumbi é a liderança que necessita ser resgatada para o povo brasileiro na reconquista do orgulho nacional!
Zumbi não morrerá nunca, pois Zumbi é liberdade! E liberdade não se mata!
8ºSetor: Os frutos de Palmares!
A mensagem deixada por Zumbi ecoou e continuará ecoando forte por nossas terras. A exemplo disso, temos o surgimento de outros movimentos que como Palmares, se basearam na luta pela liberdade: a Balaiada no Maranhão, a Revolta dos Malês na Bahia e a Confederação do Equador em Pernambuco. Esses movimentos se fortificaram a partir do legado deixado por este grande Herói Negro. Suas sementes germinaram e seus frutos continuam a serem colhidos, pois a luta pela dignidade e cidadania precisa continua.
O que Zumbi plantou nesta terra foi o amor e respeito ao homem simples
O Brasil de Zumbi ainda não se realizou, mas a lição foi bem dada por este símbolo da dignidade humana. O resto que falta, cabe a nós fazermos!
A Caprichosos de Pilares convida o povo brasileiro
para, através deste enredo, fazer uma reflexão em nome da cidadania, e
com isso, espera conseguir motivar a luta pelo social, pela igualdade,
pela paz e pelo amor,
Jaime Cezário
Carnavalesco e Autor do Enredo
Enredo baseado no Livro: Zumbi dos Palmares. A História do Brasil que não foi contada.
Autoria: Eduardo Fonseca Junior
Ao defender um resgate de personagens marcantes da história nacional cabe salientar que o Brasil é um país jovem, de pouco mais de 100 anos desde a proclamação de sua República. Obviamente muito antes da chegada dos europeus aqui já habitavam milhões de indígenas cujo esquecimento é notório em relação ao conhecimento popular. Se fizermos uma pesquisa básica veremos que para a maioria da população nossa história inicia em 1500.
Zumbi nos faz
entender que liberdade não é um favor e dignidade é uma condição
necessária para qualquer pessoa ser chamada de Povo e um território de
Nação!
Justifica-se a necessidade de voltarmos a atenção para nossa história uma vez que uma nação necessita conhecer suas raízes e valorizá-las sob pena de não se reconhecer perante o espelho do tempo. Em tempos como os atuais, onde busca-se desesperadamente por referências de liderança, Zumbi é território farto para busca de inspiração.
Zumbi é a liderança que necessita ser resgatada para o povo brasileiro na reconquista do orgulho nacional!
Como este blog sempre defendeu, o desfile das escolas de samba presta um serviço cultural dos mais valiosos à nação no que diz respeito justamente ao resgate de nossa história, pois se trata do maior evento cultural genuinamente brasileiro.
E diante disso, muito do que é dito ou sublinhado nos desfiles, representa muito para a construção de um imaginário nacional exemplar, fonte de inspiração na construção da nação que tanto sonhamos e de que necessitamos.
A Caprichosos de Pilares convida o povo brasileiro
para, através deste enredo, fazer uma reflexão em nome da cidadania, e
com isso, espera conseguir motivar a luta pelo social, pela igualdade,
pela paz e pelo amor,
Esse desejo da Caprichosos imaginamos que continue vivo atualmente. E depois de 17 anos deste enredo ele segue sendo atual. Infelizmente seguimos dando as costas para nossa própria história e inclusive ultimamente para nossa cultura. Aí reside um grande perigo.
Ainda é tempo Brasil, aliás, sempre é tempo de recomeçar!
Para finalizar, acompanhe o desfile da Caprichosos em 2003!
Até a próxima!
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